Filha da Deusa
Nasci numa pequena casa de aldeia, cujas traseiras dão para um terreno dividido por um ribeiro, e abençoado com fontes e nascentes de água cristalina, que serviam a casa, os animais e os campos.
Nos invernos mais chuvosos o ribeiro transbordava com o seu caudal lamacento, impedindo por vezes a travessia da frágil ponte para a margem norte. Os campos ensopados de água, serviam de brincadeira no inicio dos dias bons, onde, com os meus amigos, nos aventurávamos a caminhar até não nos podermos mover, com as pernitas presas numa terra que se parecia com areias movediças. Nas manhãs geladas a terra preta e húmida acordava com um manto branco de geada, o ribeiro fumegava, e as poças de água formavam uma camada de gelo inquebrável.
Quando vinham as tempestades mais intensas ficávamos sem eletricidade, e a luz do candeeiro a petróleo mandava-nos para a cama mais cedo, com os sonhos e os fantasmas, em noites longas e frias.
Quando a Primavera despertava, o ribeiro e as poças de água enchiam-se de girinos, libelinhas e miosótis. Os campos cobertos de flores de tremoço serviam de esconderijo para as brincadeiras, e as “almofadas” de margaça eram palco de todas as aventuras.
Logo que o tempo secava a terra, iniciavam-se os preparativos para as sementeiras – estonar, cavar, repousar, semear. Entre ajudar na lida da casa ou ir para o campo, escolhia o campo, e assim passava os sábados, ao lado do meu pai e dos homens que para ele trabalhavam.
Numa estrada ali ao lado, as árvores frondosas formavam uma espécie de túnel, todo o ano verde e escuro, onde sempre me sentia observada.
No verão os dias eram passados em banhos na Lagoa, ou no mar, e o sol dourava-me a pele até mudar de cor, numa alegria suave e doce.
Em todos estes acontecimentos Ela estava lá, e era tão Viva que sem o saber, A tocava e era tocada por Ela todos os dias.
Fiz os primeiros Votos com 16 anos, registados num poema que só mais tarde entendi, quando a minha alma já não cabia na caixa do esquecimento, ainda que à minha volta toda a programação me forçasse ao condicionamento. Graças á minha natureza selvagem e indomável, fui seguindo o meu canto interno, e me conectando cada vez mais com os Seus Templos, entre Serras, Rios, escarpas, matas e penedos.
Vejo-A em todo o lado, amo-A em todo o lado. Ela é em mim e eu Nela. Este encontro não carece de palavras, nem de títulos. Este encontro basta-se a si mesmo.
Ser Sua Sacerdotisa é como entrar dentro da Sua pele, e percorrer cada poro como se estivesse em casa.
Na consciência dos meus 49 anos de vida, olhar para uma sociedade órfã de Mãe, coloca em alerta todos os meus sentidos, pois vejo com clareza as consequências dessa lacuna.
Ser Sua Sacerdotisa é ser co-responsável numa plataforma de movimento, ajudando a abrir os caminhos que A trarão ao Seu lugar – Senhora, Mãe, Rainha Soberana, fonte da Vida e da Morte, inspiração e fé, alimento e prazer, liberdade e ação.
Ser filha da Deusa é estar acordada, abrir e fechar os olhos, inspirar e expirar, tecer pontes entre o Sonho e a manifestação, honrando os Seus Mistérios e os Seu Corpo Sagrado.
Mizé Jacinto, 25 de Novembro de 2018.
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