Desabafos de Abril
Hoje celebra-se o dia da liberdade no meu país, é claro que não consigo por exemplo, pensar em como era ser mulher no tempo da ditadura, não ter autonomia, não ter palavra, viver embalsamada, sempre presionada a cumprir o modelo de formatação social e sem piar!
Mas hoje não é a diferença que me move a festejar, porque ser mulher no meu país ainda é sinónimo de fragilidade, de inferioridade, e entre a santa e a puta ainda há pouca liberdade de escolha. Quer dizer, haver até há, mas as mulheres não sabem, ou sabem mas ainda lhes dá muito trabalho mudar.
Nas redes sociais, se colocamos muitas selfies somos rotuladas, por homens e por mulheres, há até quem escreva sobre isso, porque parece ser um desvio à normalidade. Se mostramos um pouco mais de pele ai ai, somos censuradas, caladas durante uns dias,ou expulsas. Se mostramos um sorriso temos aplausos, mas se cairmos na esparrela de mostar uma expressão mais sombria podemos perder a credibilidade.
Eu atravessei meio século de existência, mas ainda não estou convencada e ainda pergunto de onde raio vêm essas regras que ainda teimam em nos colocar a tod@s dentro de um quadado.
Também me lembro de ouvir contar que o meu pai era suspeito de ser espião da pide, o meu pai que a única coisa que fazia era trabalhar como todos os escravos da altura para sustentar a sua família! Lembro-me do que havia no frigorifico e na mesa, e sobretudo do que não havia.
Mais uma vez não me parece que tenha mudado assim tanto. Parece-me a mim, sei lá, que ainda somos escravos, alimentando o ciclo do consumo sem direito mais uma vez a escolhas. Quer dizer, haver há, mas também dão trabalho.
Depois, ainda dou voltas á cabeça, pensando na história da humanidade e em todas as imposições à força - religiosas, políticas e militares, da indústria alimentar, farmaceutica, da TV, da burrice, da estupidificação, etc, e de todos a apontar o dedo a todos, mas na verdade sempre obedecendo, sabe-se lá a quem.
E hoje, no dia em que se celebra a liberdade aqui no meu país, (e no resto do mundo), ironia das ironias, não podemos sair de casa, um dos direitos fundamentais dessa dita liberdade. Então, fico aqui a pensar no que estará para vir, não daqui a semanas ou meses, mas no movimento maior que se está a tecer agora. Será um efeito dominó? E para onde se moverá esta dança? Como pessoas ainda que tantas vezes indisciplinadas, mas bem mandadas, beberemos mais uma vez deste soro que nos adormece, e assistimos no sofá ou de telemóvel na mão a uma nova normalidade?
Como imaginamos o mundo daqui a uns séculos? Será que importa pensar nisso, afinal já seremos pó, e provavelmente não restará memória dos nossos feitos. Mas, será que importa pensar nisto, no que se semeia agora, na nossa responsabilidade, e na resignificação do sentido da liberdade?
Ainda posso vir aqui desabafar, pelo menos por enquanto. E pelo menos por enquanto vou continuar aqui a pensar nestas coisas todas.
Este ano tenho uma verdadeira maternidade de arvores no meu jardim, e umas outras tantas já guardadas noutra terra mágica, que virão mais tarde. Estas coisas deixam-me feliz. Os gestos simples são os que mais enriquecem a minha alma cansada, mas sempre viva.
Abril de 2020
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