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A soleira da Porta

Estou na soleira da porta, no limiar do tempo e do espaço, do fazer e do esperar, do ficar e do ir. No limiar de tudo. O meu tempo é agora e é parte nenhuma, um vazio sem nome. O meu tempo é aqui e é em todo o lado.

Estou na soleira da porta, entre mundos.


As brumas e a tempestade do momento são tão temidas quanto incríveis fontes de informação. O vórtice do medo recorda-me a cada momento que a vida é de uma criatividade sem limites. E isso acorda em mim todas as células, criando mapas de possibilidades.


Olho para a rua e para dentro de casa, como uma mega constelação, onde os representantes se movem manifestando o inconsciente, a carga pesada do passado, da dormência, da alienação e desresponsabilização, a criança ferida, perdida e assustada, a criança órfã. O adulto ferido, perdido, assustado, o adulto órfão. Abandonados a nós mesmos e por nós mesmos na cegueira dos dias, da máquina pesada da sobrevivência , da mão de obra escrava e servil. Alimentando a obediência, o maior, o senhor, o doutor, o mestre, sempre o topo da pirâmide. Nutrindo fielmente os fantasmas internos, numa lealdade cega ao novelo cheio de nós, doa o que doer.


Sempre vivi na soleira da porta, à espera do futuro, e desde cedo desenterrando o passado, faminta de uma outra vida, seguindo o rasto daquele cheiro que me fazia percorrer distâncias infinitas, dentro de mim, sempre dentro de mim, porque o muro alto que cercava a familia, a aldeia, o país acabado de sair de uma ditadura, de uma guerra, e tantas vezes da fome, estava lá, sempre lá, num olhar que me congelava, nas palavras que cortavam e desfaziam as cores em pedaços, na ausência da esperança que não fosse a de ter um bom trabalho, uma casa e uma família. Não havia lugar para a diferença nem para a mudança. As regras comunitárias carregadas de uma moral religiosa traziam para dentro de casa uma ditadura mascarada de normalidade. Era preciso pertencer, independentemente da presença individual. Esse era um tesouro enterrado nos limites de tudo, onde poucos ousavam ir, e onde se pagava um preço alto caso ousássemos desenterra-lo. Viver na soleira da porta não tinha qualquer importância desde que fizesse a minha parte. Reclamar, perguntar, negar a obediência era perigoso, sentio-o vezes sem conta, sentiu-o o meu pai, o pai do meu pai, e talvez outro e mais outro lá para trás. Esmagados pelo peso do coletivo quantas vezes terão dito sim, quando queriam dizer não, ou vice versa.


Viver na soleira da porta é viver num espaço limiar, onde a vida também acontece, e se estende em múltiplas direções. Deste lugar olho para fora e posso ver o caminho que se abre e desdobra, os trilhos que me devolvem a terra aos pés a cada passo, e na certeza de caminhar num corpo que é vida mas também é morte e que aceitar a morte é resgatar a vida, que aceitar as perdas é resgatar a liberdade e a dignidade, que as encruzilhadas da vida são na verdade lugares mágicos onde habitam todas as possibilidades.


Olho para baixo e o que nuns dias parece ser um fosso negro, também se revela um imenso portal. E beijo esta terra debaio dos meus pés que é o silêncio vivo, um livro onde leio as memórias dos meus ancestrais, uma biblioteca infinita, tão profundamente rica, ainda que árida e seca, falando numa linguagem que se revela camada após camada. Debaixo dos meus pés abre-se a visão plena, nesse negrume vive a vida. Aqui vibro e aprendo todos os dias.


Olho para cima, os olhos enchem-se de espanto. Sempre achei que era tão pequena que não teria lugar nesta imensidão, e levo-me até à exaustão na procura de entender o infinito. E algures num momento rendição, uno a terra com o céu e o céu com a terra, sabendo que não há nada nem niguém que não faça parte disto. Incluindo eu. E aqui devolvo aos meus olhos o brilho e as lagrimas. Devolvo o sonho ao seu lugar de pertença. Aqui a vida sonha-se a si mesma.


Olho para dentro, para um lugar que é ordem e caos, que é um casulo seguro e fecundo, uma prisão e uma celebração. No tempo circular os opostos são pontes para o viver. E o coração alegra-se cada vez que acolhe todas as faces desta presença. Aqui residem as escolhas, as consequências, e a possibilidade de reescrever a história, porque a vida também é amor.


Deste lugar, desde a soleira da porta, inquieto-me e aquieto-me. Sei que o véu que esconde também revela. Sei que estes tempos, como outros no passado e porventura no futuro, são oportunidades, e que não se trata de testar quem fica ou quem parte, porque a vida vai seguir em frente independentemente de todas as teorias, independentemente do grau de consciência ou inconsciência desta massa humana.


O campo onde a constelação se move revela-se nos mais simples gestos, quase imperceptíveis, e também na catarse, no choro e no pranto, no largar e no tomar, no entender numa lógica que vai muito para além da mente. Aqui a vida mostra-se na sua complexidade, na lentidão dos passos firmes e na velocidade do superficial. E tudo faz parte, porque ainda assim o somos. Mas também nos convida, como sempre o fez, a olharmos para além do óbvio, da aparente solidez e do aparente caos. Isto eu agradeço todos os dias.


Ontem comprei mais 3 árvores. Tenhos dias que não preciso de mais nada.



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