Sobre a vida e a morte, 50 anos e um balanço.
Este ano secaram-me duas raízes, e hoje são terra e húmus, água e vento. Uma oriunda da raíz materna e outra da raíz paterna. A minha tia Fernanda e a minha Tia Maria, hoje são tudo e estão em toda a parte.
A minha avó faz amanhã 98 anos, vive, contudo já pouco mais do que um corpo que respira. O estado, entre dois mundos, ainda que em "aparente" lucidez, revelam mais uma face deste grande mistério - o último, e que tantas vezes parece ser apenas mais um.
Este ano completei meio século de existência neste corpo. E assim a vida segue, o tempo, implacável e sem dar tréguas, segurando a outra ponta do fio que avança a galope, ainda que distante. Porque a ideia da morte é uma ideia abstrata. Distante
50 anos e outros milhares de passos, para chegar à conclusão de que poucas coisas nesta dimensão são reais.
A ideia de céu apregoada pela igreja católica durante toda a minha infância e adolescência é mentira. A ideia de inferno também é mentira. As histórias contadas nos livros de indios maus e cowboys bons emprestados pelo meu vizinho e devorados num ápice, eram mentira. A ideia de que era preciso saber viver em comunidade, cumprindo as regras para que nada nos tivessem a apontar, era mentira. A ideia de que a amizade era eterna e fiel a qualquer preço era mentira. A ideia do bom emprego, da segurança da casa e dos bens materiais era mentira. A ideia do bom marido, fiel e companehiro era mentira. A ideia do futuro ser melhor era mentira. A ideia do sacrificio para sobreviver era mentira. A ideia de dar tudo na esperança do retorno era mentira. A ideia de uma nova espiritualidade, mais humana, mais generosa, circular, inclusiva, sem competição, era mentira. A ideia de gurus mágicos e sacerdotisas inspiradoras era mentira. A ideia de termos que ser perfeitos, protegendo as fragilidades para não perdermos o lugar, é mentira. A ideia de que respeitamos os outros, a nós mesmos e à vida ao nosso redor com tecnicas de basta juntar água e palavras coloridas é mentira. A publicidade que pagamos todos os dias é mentira. A política que elegemos é mentira. A comida que comemos é mentira.
Tantas e tantas vezes eu sou mentira. Quando digo sim e queria dizer não. Quando exijo demais de mim mesma e dos outros. Quando não me Vejo e não me respeito. Quando não Vejo nem sei escutar o outro. Quando sorrio e me apetecia chorar. Quando permaneço calada e me apetecia gritar.
As minhas tias são reais, tal como o desaparecimento delas do plano físico é real. A minha morte também será real. Todas as vezes que já morri foram reais. Todas as vezes que renasci também. A força da Vida que me corre nas veias, ainda que tantas vezes sem rumo, é real. Todas as minhas raízes, as que já se transformaram em composto e as que ainda pulsam, são reais. A semente que se preserva é real. Os frutos são tantas vezes tão suculentos que é impossível não serem reais. Quando sinto o vento a dançar na minha pele a sensação é real. Quando os meus olhos brilham abraçados por novas ideias, as minhas células transmitem-me a ideia de serem reais. Quando sinto o amor a florir num abraço, na saudade, na aventura, também isso é real.
Este tempo-sem-tempo não precisa de ser real, não me importam os conceitos. Aqui celebro todas as vidas que escreveram o meu nome e já são deusas e deuses manifestando-se algures nesta terra mágica.
Aqui me celebro, me rendo e entrego à Noite Escura, e aos seus sigilos. Assim se desenha a vida. Ninguém fica de fora da roda. Assim agradeço, às vezes em prece, outras em pranto.
Assim se cumprem os dias.
Mizé Jacinto
31 de Outubro de 2019